Primeira Free Shop de Cáceres pode nascer mais cara que as demais no Brasil? Especialistas analisam o novo decreto de Mato Grosso
A publicação do Decreto nº 1.684, de 26 de setembro de 2025, regulamentando a Lei estadual nº 12.897/2025, inaugurou o chamado Regime Cidades Gêmeas/ICMS-MT. O diploma legal cria um modelo inédito no país para disciplinar o funcionamento das lojas francas em cidades de fronteira, tendo Cáceres como pioneira.
Contudo, o dispositivo que vincula a fruição da isenção do ICMS ao recolhimento de 5% do valor total das vendas ao Fundo de Apoio às Ações Sociais de Mato Grosso (FUS/MT) despertou forte debate entre juristas e especialistas em comércio exterior. A questão é se o Estado estaria, de fato, criando um “ICMS paralelo”, ferindo a isenção prevista no Convênio ICMS 91/91 e tensionando a competência privativa da União sobre o comércio exterior.
O que diz o Decreto nº 1.684/2025
O Decreto inseriu o Anexo XX ao Regulamento do ICMS (Decreto nº 2.212/2014) e estabeleceu que:
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as operações de entrada e saída de mercadorias nas lojas francas de Cáceres seriam isentas de ICMS (art. 2º);
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a fruição do benefício estaria condicionada ao credenciamento na SEFAZ/MT e à regularidade fiscal do contribuinte (art. 3º);
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a isenção alcançaria tanto produtos nacionais quanto importados, desde que observadas as regras da Instrução Normativa RFB nº 2.075/2022 (art. 5º);
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como contrapartida, a loja franca deverá recolher 5% sobre o valor da operação isenta ao FUS/MT (art. 7º).
Na prática, a cada R$ 1.000,00 em vendas, R$ 50,00 seriam direcionados ao Fundo Social, independentemente do valor do ICMS que seria devido.
O respaldo normativo: Convênio ICMS 91/91 e Constituição Federal
O Convênio ICMS 91/91, alterado pelo Convênio ICMS 4/2014, autorizou os Estados a concederem isenção do ICMS em operações realizadas por lojas francas situadas em aeroportos internacionais e em cidades gêmeas. O Estado de Mato Grosso, portanto, exerce competência legítima ao isentar tais operações, conforme o art. 155, §2º, XII, “g” da Constituição Federal, que exige convênio no âmbito do CONFAZ para benefícios fiscais de ICMS.
A lei estadual nº 12.897/2025 seguiu essa trilha e o Decreto nº 1.684/2025 regulamentou o regime, tendo como fundamento ainda a Portaria MDR nº 2.507/2021, que classificou Cáceres como cidade gêmea.
O problema surge no ponto em que o Estado vincula a isenção à contribuição de 5% ao FUS/MT.
O ponto crítico: o FUS/MT como encargo sobre a operação
O art. 7º do Decreto nº 1.684/2025 exige que, para cada operação isenta de ICMS, seja recolhido ao FUS/MT um valor correspondente a 5% do montante da venda.
Aqui reside o risco de inconstitucionalidade:
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Desvirtuamento da isenção do Convênio 91/91. Ao exigir pagamento sobre o preço total da mercadoria, o Estado pode estar criando um encargo que, na prática, neutraliza a isenção autorizada pelo CONFAZ.
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Aparência de novo tributo. O encargo não se apresenta como imposto, mas funciona como um tributo substitutivo, o que violaria o princípio da legalidade tributária (art. 150, I, CF) e invadiria competência da União em matéria de comércio exterior (art. 22, VIII, CF).
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Descompasso com precedentes do STF. O Supremo Tribunal Federal, ao analisar fundos estaduais como o FEEF do Rio de Janeiro (ADI 5635 e Tema 1386), admitiu a constitucionalidade de depósitos condicionados à fruição de benefícios de ICMS. Mas, nesses casos, o depósito recaía sobre o valor do benefício fiscal usufruído (parte do ICMS dispensado) e não sobre o preço total da operação.
Portanto, exigir 5% do valor da venda, em vez de um percentual sobre o ICMS dispensado, extrapola o modelo chancelado pela Corte e cria um ônus desproporcional às lojas francas.
Análise crítica do Decreto nº 1.684/2025
O art. 7º do decreto de Mato Grosso condiciona a isenção ao recolhimento de 5% sobre o valor da operação de saída.
Essa modelagem jurídica:
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Extrapola os limites da jurisprudência do STF, que admite condicionantes apenas quando incidentes sobre o benefício fiscal usufruído (ICMS dispensado), e não sobre o valor integral da operação.
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Desvirtua a isenção prevista no Convênio ICMS 91/91, pois cria um ônus econômico equivalente a uma “tributação substitutiva do ICMS”, o que poderia ser caracterizado como bitributação indireta.
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Afeta a competência da União em matéria de comércio exterior, já que a neutralidade fiscal das lojas francas é pressuposto do regime aduaneiro regulado pela Receita Federal do Brasil (IN RFB nº 2.075/2022).
Em termos práticos, a contribuição estadual poderia reduzir a atratividade das lojas francas de Cáceres frente a outras cidades gêmeas, ferindo os princípios constitucionais da livre concorrência (art. 170, IV, CF) e da isonomia tributária (art. 150, II, CF). (Parecer Dr. Ledson Catelan).
“O Regime Cidades Gêmeas/ICMS-MT, em sua essência, encontra pleno respaldo constitucional, no Convênio ICMS 91/91 e no art. 155, §2º, XII, g, da Constituição Federal. O ponto vulnerável, contudo, reside no art. 7º do Decreto nº 1.684/2025, ao exigir contribuição de 5% sobre o valor da operação isenta. Essa exigência extrapola os limites do Convênio e contraria a jurisprudência firmada pelo STF, notadamente na ADI 5635 e no Tema 1386 de Repercussão Geral. Tal previsão normativa pode ser considerada inconstitucional, seja por configurar um novo tributo disfarçado, seja por comprometer a neutralidade do regime aduaneiro federal, matéria de competência privativa da União.”
Impacto econômico: a free shop mais cara do país?
O desenho atual torna a operação em Cáceres mais onerosa que em Foz do Iguaçu ou Uruguaiana, onde não há contribuição semelhante.
Exemplo prático:
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Operação de R$ 1.000,00
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ICMS presumido sem isenção: 18% = R$ 180,00
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Depósito no modelo aceito pelo STF (10% do benefício): R$ 18,00
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Depósito exigido em Mato Grosso (5% do valor da venda): R$ 50,00
O peso do FUS/MT, nessa hipótese, seria quase três vezes maior que o modelo validado pelo STF. Isso pode afastar turistas e investidores, corroendo justamente a competitividade que se buscava ao implantar a primeira loja franca de Cáceres.
Mesmo com 5%, free shop segue mais barata que o comércio comum.
O adicional ao fundo social não apaga o brilho do regime: as free shops continuam oferecendo preços imbatíveis diante do comércio comum, onde os tributos corroem até 40% do valor do produto.
cobrança de 5% pode soar pesada, mas não chega perto da carga tributária do comércio fora do regime, que supera facilmente os 40%. A diferença segue sendo um trunfo para a fronteira.
Cáceres ainda desponta como vitrine de preços competitivos, com vantagem clara frente ao mercado tradicional, abrindo caminho para um novo ciclo econômico na fronteira.
Caminho para harmonização
Especialistas apontam que a solução seria redesenhar o art. 7º para vincular a contribuição ao FUS/MT ao percentual do ICMS dispensado na operação, com base na alíquota interna do produto. Assim, o Estado manteria a fonte de recursos sociais, mas dentro dos parâmetros aceitos pelo STF e respeitando a arquitetura do Convênio 91/91.
Essa medida preservaria o equilíbrio entre arrecadação social e atratividade econômica, evitando que a loja franca de Cáceres seja rotulada como a mais cara do país.
O Decreto nº 1.684/2025 representa um avanço histórico para a economia de Cáceres e para a consolidação das cidades gêmeas em Mato Grosso. Entretanto, a exigência de 5% sobre o valor da operação isenta ao FUS/MT coloca em risco tanto a constitucionalidade da norma quanto a competitividade da cidade frente a polos já consolidados como Foz do Iguaçu e Uruguaiana.
O desafio do Governo do Estado será alinhar a política social com a segurança jurídica e a atratividade econômica, sob pena de ver Cáceres nascer como a primeira free shop do Brasil marcada não pela isenção, mas pela onerosidade.
Dr. Ledson Catelan
Advogado, professor universitário, Mestre em Direito, Especialista em Direito Empresarial, Trabalhista Patronal, Família e Sucessões e Bancário.
@ledsoncatelanadvocacia