A recuperação judicial, o princípio da preservação da empresa e a teoria da Katchanga

A chamada Teoria da Katchanga, explicada por Luis Alberto Warat e mais adiante difundida por Lênio Streck e George Marmelstein, nasceu da metáfora de um jogo aparentemente sem regras claras.

Um rico senhor entra em um cassino e diz que só joga “Katchanga”. Ninguém conhece o jogo, mas o dono manda os crupiês fingirem jogar para aprender as regras e depois faturar em cima dele. Na primeira rodada, o homem grita “Katchanga!” e leva tudo. Na segunda, o mesmo. E assim aconteceu a noite inteira.

Até que um crupiê tenta ser mais esperto e grita “Katchanga!” antes do cliente. O rico sorri e responde: “Espere, eu tenho uma Katchanga Real!”. E novamente ganha o jogo.

A anedota busca discutir o uso desmedido e não fundamentado de princípios jurídicos.

Quem nunca se deparou com uma decisão que, invocando um princípio, afasta por completo a aplicação de uma lei, de um ato administrativo ou até mesmo de um contrato validamente celebrado?

Basta lembrarmos da decisão do então ministro Ricardo Lewandowski, que, de forma monocrática, invocando o princípio da proporcionalidade, ignorou todo o processo legislativo que resultou na Lei das Estatais, diploma aprovado em 2016, no contexto da Lava Jato, para fortalecer a governança e a transparência e, com isso, afastou a regra da quarentena e abriu espaço para a volta das indicações políticas nas estatais.

Katchanga!

No caso das recuperações judiciais, o princípio da preservação da empresa tem sido utilizado como verdadeira Katchanga Real.

O postulado, concebido para assegurar a continuidade da atividade econômica e a preservação dos empregos dela decorrentes, muitas vezes é convertido em verdadeira “carta coringa”. Basta invocá-lo para afastar regras claras do direito falimentar e tributário, como a viabilidade econômica do plano e a exigência de regularidade fiscal, por exemplo.

O seu uso desmedido tem, na prática, ignorado a avaliação de viabilidade econômica, legitimidade (e veracidade) do pedido de recuperação judicial, fazendo com que um belo instituto do direito, baseado na função social da atividade empresarial, seja, em alguns casos, utilizado por terceiros para acobertar atos de má-gestão, sucessões empresariais ilegítimas e até mesmo fraudes, em detrimento dos credores, do judiciário e da própria sociedade.

Isso porque, assim como na Katchanga, a simples invocação retórica do princípio é quase como um grito de “preservação da empresa!” se torna suficiente para que os vários atores fechem os olhos para a realidade, ignorando os fatos e consequentemente a coerência do sistema normativo.

A consequência é a banalização do instituto, fragilização da segurança jurídica, a desproteção dos credores e a corrosão da confiança na ordem legal.

Portanto, o jogo da Katchanga e o uso arbitrário do princípio da preservação da empresa revelam o mesmo risco: transformar argumentos em truques de ocasião, convertendo o processo judicial em terreno de voluntarismo.

Contra isso, precisamos entender que o multicitado princípio deve sim ser analisado como um dos elementos do pedido de recuperação, mas não pode ser o único.

É imprescindível a análise criteriosa da existência da situação de crise, que o plano seja viável, verdadeiro e respeite as balizas normativas, evitando que o uso desmedido da matriz interpretativa se transforme em um atalho que desestabiliza o sistema e acabe privilegiando somente o mau-pagador.

*Yuri Nadaf Borges é procurador do Estado de Mato Grosso, vice-presidente da Apromat, advogado, professor e membro da comissão de direito tributário do IMAN.

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