Longa mato-grossense transforma Quilombo Mata-Cavalo em cenário de resistência, memória e ficção

 

“Religare”, longa-metragem de produção mato-grossense, tem sido rodado em Cuiabá e arredores, e nos dias 14, 15 e 16 de junho, transformou a Comunidade Mutuca, no Quilombo Mata-Cavalo, em cenário central de sua narrativa. O drama social contemporâneo, com roteiro original e direção de Marithê Azevedo e produção da Latitude Filmes, conta a história de três mulheres em processo de reconexão com a terra: Vivi, (com atuação de Ediana Souza), Lourdes (interpretada por Kâisãró Diroá) e Eloah (vivida por Letícia Sabatella).

O espaço do Quilombo foi ambientado como uma aldeia indígena fictícia, onde foram gravadas diversas cenas do núcleo da personagem Lourdes. A atriz indígena Kâisãró Diroá, com mais de duas décadas de trajetória artística, refletiu sobre a importância de sua presença no projeto:

“O fato de hoje eu estar participando desse filme faz parte da minha trajetória como atriz, como artista e como humana. Afinal personagens indígenas precisam ser feitos por pessoas indígenas. A minha participação faz parte da construção da minha carreira, o fato de eu ter aceito é em prol da representatividade, mas também para mostrar que as pessoas precisam parar de ver pessoas indígenas como se estivessem interpretando seu próprio papel, afinal eu como atriz vivo a realidade de personagens que são muitíssimo diferentes da minha, não vivo em território indígena, nem em local de conflito de terras”, explicou.

Kai, como é chamada, pertence às etnias Tarino e Tucano. Nascida em Lauaretê, na fronteira entre Brasil e Colômbia, cresceu em Manaus, onde teve seu primeiro contato com o teatro. Um ano depois, aos sete anos de idade, integrou o elenco infantil do filme “Tainá”. Vinda de uma família de artistas – do cinema ao artesanato – ela se dedicou profissionalmente à atuação a partir da maioridade, participando, inclusive, da série “Cidade Invisível”.

“Principalmente pela falta de representatividade dentro da TV, dentro da publicidade, da mídia. Só estávamos ali mesmo tentando sobreviver, mas depois de dois longas, diversos curtas e documentários, aos 18 anos, passei a me doar cada vez mais para isso.”

Hoje, Kai escolhe trabalhar em obras que dialoguem com suas causas e valores, como o respeito à diversidade e à preservação ambiental:

“Acho que esse projeto vai mostrar a realidade dos indígenas em relação a vários temas importantes, que muitos ainda não retrataram, como as indígenas que vêm para a cidade e acabam se tornando empregadas domésticas, sofrendo preconceito, violência, o genocídio de pessoas indígenas”, afirmou.

A preparadora de elenco, Tatiana Horevicht, revelou que o elenco de “Religare” é numeroso, composto por núcleos independentes das três protagonistas, e prioriza profissionais locais. Mais de 200 pessoas participam da figuração.

A equipe de arte adaptou o espaço do Quilombo Mata-Cavalo como uma aldeia fictícia repleta de simbolismo e ação. As gravações contaram com a presença de atores de diferentes etnias, entre eles os Boi Bororo, vindos de Itadari, e o Cacique Chavange, do Xingu.

“Em breve vamos filmar com as rendeiras de Livramento. Então o filme tem esse teor quase documental, onde retratamos pessoas reais no seu ofício. Por exemplo, teve uma cena dentro da redação de um jornal, onde a figuração eram jornalistas reais. É um pedido da Marithê, que as pessoas fossem próximas das profissões dentro da cênica, e tem sido um incrível aprendizado”, revelou Tatiana.

Um dos espaços de gravação mais emblemáticos foi a Comunidade Mutuca, escolhida não por acaso, mas por carregar uma história viva de resistência e luta por território. Laura Silva, quilombola, pedagoga, bacharela em Direito, mestra em Estudos de Cultura Contemporânea e doutoranda no Instituto de Saúde Coletiva, falou sobre o impacto da escolha:

“Quando o produtor de locação, Manoel, entra em contato sobre um local para gravação do filme, achei super legal, mas não esperava que a minha comunidade, em especial a casa dos meus pais, seriam esse espaço. Levamos ele a outros locais, porém, o escolhido para as gravações foi a nossa comunidade. Para nós é muito importante. Só o fato de evidenciar a comunidade quilombola nos fortalece muito, levando em consideração que o filme retrata sobre as violências agrárias e disputas de terra. Para mim e para a comunidade é muito importante, considerando que o filme foi gravado num local que luta por regularização fundiária, luta pelo título e precisa fazer com que os órgãos vejam o quanto a obra de ficção é real. Muitos quilombolas sendo tombados em decorrência da luta.”

A história
O enredo de “Religare” entrelaça as vivências de três mulheres em um mosaico de resistência, cura e retorno à terra. Suas trajetórias se cruzam em meio a conflitos fundiários, devastação ambiental e dilemas entre tradição e progresso. Lourdes, uma mulher indígena desconectada de suas origens, parte em busca do irmão e de suas raízes culturais. Eloah, viúva de um empresário do agronegócio, vê sua vida tomar outro rumo ao questionar sua relação com a terra. Já Vivi, uma jornalista idealista, arrisca tudo para denunciar a violência contra os povos originários, tornando-se uma voz firme na luta por justiça.

O elenco traz nomes locais como Maria Clara Bertúlio, Romeu Benedito, Vera Capilé, Thereza Helena, Luiz Marchetti, Lioniê Vitório, Benedita Xuxa e Ilson Oliveira. Com previsão de lançamento para data ainda a ser divulgada, “Religare” promete emocionar e provocar reflexão ao trazer à luz narrativas femininas que brotam de diferentes territórios e urgências sociais.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *