“Bagres” e milionários: bastidores do cartel anestésico revelado pela polícia

Uma investigação da Polícia Civil do Distrito Federal expôs um suposto esquema de monopólio que controla há décadas o mercado de anestesiologia na capital federal. No centro da trama está a Cooperativa dos Médicos Anestesiologistas do DF (Coopanest-DF), acusada de comandar um sistema fechado, excludente e altamente lucrativo em hospitais privados.

Segundo as apurações, a Coopanest estrutura sua atuação por meio de grupos exclusivos de anestesistas que dominam determinadas unidades hospitalares. Cada hospital funciona como um “feudo”, onde apenas os médicos ligados à cooperativa conseguem trabalhar. Profissionais independentes ou recém-chegados ao DF são barrados, a menos que sejam aceitos pela própria cooperativa e pelo grupo dominante no local.

Sistema de exclusão

Depoimentos colhidos pela Polícia Civil revelam um ambiente de intimidação e boicote a quem tenta romper com o monopólio. Médicos autônomos são sistematicamente excluídos e, caso desafiem o sistema, enfrentam retaliações como perda de plantões, isolamento profissional e até ameaças veladas.

Para atuar na rede privada, os anestesistas precisam da chancela da Coopanest e de um grupo estabelecido. Caso contrário, tornam-se “párias” no mercado, como descreveu um dos profissionais ouvidos na investigação.

“Tabela da chantagem”

A força da cooperativa se sustenta, entre outros fatores, por sua exclusividade junto aos planos de saúde. Todos os procedimentos anestésicos realizados na rede privada são faturados pela própria Coopanest, que repassa parte dos valores aos grupos — e retém a outra parte.

Hospitais e operadoras de saúde não têm poder de negociação. São obrigados a aceitar a chamada “tabela da Coopanest”, cujos valores chegam a ser sete vezes superiores aos das tabelas de referência do mercado, como a CBHPM e a AMBR. Quem contesta os valores enfrenta boicotes: cancelamentos de cirurgias, recusa de anestesistas e colapso no atendimento.

Um convênio ligado à Força Aérea Brasileira foi descredenciado após discordar dos preços. Uma clínica de radioterapia teve que interromper o atendimento por falta de anestesistas, após tentar contratar profissionais de fora da cooperativa — todos, segundo a investigação, estariam ligados direta ou indiretamente à Coopanest.

Retaliações e poder concentrado

O episódio mais emblemático ocorreu quando um hospital de grande porte rompeu com uma clínica associada à cooperativa. A reação foi imediata: anestesistas abandonaram os plantões, cirurgias foram canceladas e médicos que aceitaram substituir os faltantes foram pressionados. O hospital chegou a operar com apenas quatro anestesistas para toda a demanda, levando à suspensão de centenas de procedimentos.

A investigação também revelou uma hierarquia rígida dentro da cooperativa. Médicos que não fazem parte da “sociedade majoritária” são conhecidos como “bagres” e ficam com os plantões mais difíceis — noturnos, fins de semana e cirurgias de risco — recebendo valores fixos por hora. Enquanto isso, os lucros ficam concentrados nas mãos dos sócios que controlam contratos e escalas.

Impacto no sistema público

O domínio da Coopanest-DF também atinge o setor público. Hospitais como o da Criança de Brasília e até a Secretaria de Saúde do DF relataram dificuldades para contratar anestesistas devido aos altos valores exigidos. Um levantamento citado aponta que mais de 1.300 cirurgias, incluindo 500 pediátricas, deixaram de ser realizadas por inviabilidade financeira.

Operação Toque de Midaz

Essas práticas são alvo da Operação Toque de Midaz, deflagrada em abril pela Polícia Civil e pelo Ministério Público do DF. A ação cumpriu mandados de busca e apreensão contra anestesiologistas e dirigentes da cooperativa investigados por cartel, organização criminosa, constrangimento ilegal e lavagem de dinheiro.

O nome da operação faz referência ao rei Midas, símbolo da ganância, e ao sedativo Midazolam, amplamente usado em procedimentos anestésicos.

Em nota, a Coopanest-DF negou as acusações e afirmou que “nunca houve e não há cartel” em sua atuação. A cooperativa declarou atuar eticamente há mais de 40 anos.

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