Em apenas seis dias, em novembro de 2024, três integrantes de uma quadrilha de Santo Antônio do Descoberto (GO) invadiram duas joalherias em shoppings de Santa Catarina e levaram R$ 6,3 milhões em pedras preciosas e relógios. O ouro furtado foi parar no mercado ilegal, vendido por preços abaixo dos praticados no varejo, mas suficientes para manter viva uma rede criminosa que se estende muito além das fronteiras do município goiano.
Fáceis de transportar, difíceis de rastrear e sempre em alta no mercado, as joias se tornaram moeda corrente entre criminosos. Na última reportagem da série A Rota dourada do crime, o Correio revelou como itens de luxo são usados em esquemas de corrupção, lavagem de dinheiro e contrabando no país. Segundo dados obtidos pela Polícia Federal (PF) por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), o crime organizado movimentou mais de meio bilhão de reais em joias nos últimos dez anos.
A baixa rastreabilidade das peças é um dos principais atrativos para facções, empresários e servidores públicos envolvidos em desvios. De acordo com a PF, de janeiro de 2015 a junho de 2025, foram abertos 404 inquéritos relacionados à lavagem de dinheiro com o uso de joias. Desses, 347 já resultaram no indiciamento de 3.918 pessoas e em 40 prisões. Os estados com maior número de indiciados são São Paulo (502), Minas Gerais (439), Rondônia (309), Rio Grande do Sul (285) e o Distrito Federal (220).
Esquema nacional
A Operação Capa Preta, deflagrada pela PF em junho de 2023, revelou parte dessa logística oculta. Sete medidas cautelares foram cumpridas em cidades do Mato Grosso do Sul, onde a polícia apreendeu dinheiro em espécie e uma bolsa de couro contendo aproximadamente 350kg de ouro.
O uso de joias e ouro ilícito não se restringe às ruas ou a facções. Servidores públicos e políticos também alimentam o mercado ilegal. De 2015 a 2025, a PF abriu 93 inquéritos para apurar desvio de recursos públicos com apreensão de joias, resultando no indiciamento de 678 pessoas e na apreensão de 1.440 peças, avaliadas em R$ 24,5 milhões.
Mercado paralelo
Segundo Frederico Bedran Oliveira, presidente da Comissão de Direito Minerário da OAB-DF, boa parte do ouro usado em joalherias ou na indústria tecnológica vem de extração ilegal ou sem origem comprovada. “O crime organizado abastece lojas e indústrias com ouro ilegal. A sociedade ainda não se preocupa em saber a procedência de uma joia”, afirma.
A Receita Federal, que atua desde o controle de entrada e saída de itens no país até a fiscalização de movimentações financeiras, reconhece a dificuldade de controle do setor. Segundo Daniel Belmiro Fontes, auditor superintendente-adjunto do órgão, qualquer loja flagrada sem lastro documental de joias pode sofrer pena imediata de perdimento das mercadorias.
A fiscalização é complexa, especialmente no varejo, onde há inúmeros comerciantes e a rastreabilidade desde a origem é falha. Um dos golpes mais notórios foi desmantelado na operação Pirâmide de Ouro, em fevereiro de 2024, após a apreensão de 15 barras de ouro no Aeroporto Internacional de Belém (PA). A ação revelou uma quadrilha familiar do Paraná, que extraía ilegalmente minério em Rondônia e Amazonas e o revendia a uma empresa em Goiânia (GO). O esquema movimentou cerca de R$ 2 bilhões em ouro sem origem legal.
Em 2023, a Receita intensificou operações contra irregularidades no setor de joalherias, realizando 1.067 fiscalizações e autuando mais de R$ 30 bilhões em impostos devidos.
A ponta do iceberg
O caso da quadrilha de Santo Antônio do Descoberto, que começou com o furto em duas vitrines de shopping, ilustra a ponta de uma cadeia criminosa muito maior. Depois de furtadas, as joias são derretidas, transformadas em novas peças e revendidas a clientes que, muitas vezes, ignoram a procedência ilícita do brilho que ostentam.