Novo consignado com FGTS como garantia levanta debate sobre dignidade, dívida e os limites do crédito

Medida Provisória autoriza uso do FGTS como saldo garantidor de empréstimos com desconto em folha para trabalhadores da iniciativa privada. Especialistas alertam: solução financeira pode esconder armadilhas éticas e sociais.

Uma nova Medida Provisória publicada pelo governo federal em março de 2025 criou o chamado consignado privado — uma linha de crédito destinada a trabalhadores do setor privado com desconto direto em folha, operacionalizada via eSocial. Um dos pontos mais debatidos da proposta é a possibilidade de usar o FGTS como garantia do empréstimo, o que tem sido visto por analistas como um avanço técnico… mas também um risco.

Com taxas de juros potencialmente menores e inclusão de grupos historicamente excluídos do sistema financeiro, como empregados domésticos, rurais e MEIs, a iniciativa busca aliviar o peso das dívidas caras. No entanto, à medida que o crédito se amplia, crescem também as dúvidas sobre seus efeitos sociais de longo prazo.

Quando o crédito invade o que deveria ser intocável

A proposta levanta uma questão delicada: até que ponto o uso de um fundo trabalhista — originalmente criado para dar segurança em casos de demissão — pode ser transformado em instrumento para acesso ao consumo imediato? O que está em jogo é mais do que uma política pública de crédito: trata-se de um novo modelo de relação entre trabalho, salário e dívida.

A crítica não é à inovação em si, mas ao que ela pode representar. Especialistas alertam para o risco de que, ao permitir que o FGTS seja usado como garantia, o Estado esteja dando um passo decisivo rumo à financeirização do trabalho — quando o salário, o futuro e a própria estabilidade deixam de ser direitos e passam a ser moedas.

Superendividamento: problema financeiro ou moral?

A discussão ganha ainda mais força quando se lembra que, em 2021, foi sancionada a Lei 14.181, conhecida como a Lei do Superendividamento. A norma alterou o Código de Defesa do Consumidor (CDC) para proteger o mínimo existencial dos cidadãos, permitindo a renegociação coletiva de dívidas e criando barreiras ao assédio de instituições financeiras.

A nova MP, entretanto, levanta a dúvida: estaríamos oferecendo mais crédito justamente para aqueles que já sofrem com dívidas excessivas? Ou, pior, estaríamos apenas reorganizando essa dívida em novos moldes — mais modernos, mas nem sempre mais humanos?

O alerta filosófico: quando tudo está à venda

Para o filósofo político Michael Sandel, vivemos não apenas numa economia de mercado, mas em uma sociedade de mercado, onde cada aspecto da vida humana é transformado em mercadoria. Em sua obra O que o dinheiro não compra, ele questiona: que tipo de sociedade criamos quando permitimos que tudo — inclusive o tempo, o corpo e o futuro das pessoas — seja convertido em produto financeiro?

Aplicando essa lente à nova política de crédito, surgem perguntas incômodas:

  • O crédito é um instrumento de liberdade ou uma nova forma de servidão?

  • O salário é uma conquista do trabalhador ou uma simples garantia para o sistema bancário?

  • E quando até o FGTS entra na equação, o que ainda resta como reserva do cidadão diante da crise?

Economia x sociologia: um embate sobre o que é progresso

Do ponto de vista econômico, a MP pode ser vista como um avanço: reduz riscos para os bancos, oferece juros menores e amplia o acesso ao crédito formal. Mas sociólogos e estudiosos das políticas públicas veem outra dimensão.

A antecipação constante do futuro — salário, fundo de garantia, aposentadoria — compromete o presente das famílias, gera ansiedade e torna a autonomia do cidadão refém do sistema financeiro. Além disso, cria a ilusão de escolha, quando na verdade se trata muitas vezes de uma dependência estruturada, travestida de liberdade.

Direito do consumidor: entre proteção e realidade

O Código de Defesa do Consumidor nasceu com o objetivo de proteger a pessoa, e não o contrato. Para ser eficaz, a nova linha de crédito precisa vir acompanhada de:

  • Educação financeira acessível;

  • Regras rígidas contra práticas abusivas;

  • Preservação do mínimo vital.

Sem essas salvaguardas, o que poderia ser solução pode se tornar uma nova face da opressão — agora mais digital, mais automatizada, e descontada direto em folha.

Conclusão: o que nos resta quando até o futuro pode ser vendido?

O uso do FGTS como garantia do consignado inaugura uma nova etapa da relação entre trabalhador e dívida no Brasil. Embora ofereça alívio imediato para muitos, também escancara o risco de um modelo que transforma a cidadania em capacidade de endividamento.

O alerta deixado por Michael Sandel é claro: o dinheiro não apenas compra — ele transforma. E, às vezes, corrompe. Se tudo pode ser convertido em crédito, inclusive o futuro de quem trabalha, o que ainda nos resta como inegociável?

Dr. Ledson Catelan
Advogado e Professor Universitário (Unemat BBG)
Especialista em Direito Empresrial, Família, Trabalho, Bancário.
Mestre em Direito
@ledsoncatelanadvocacia

Fonte: Migalhas – A nova MP do consignado: Crédito, dignidade e seus limites éticos

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